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A discussão lingüística no discurso de Lewandovski na grande polêmica da Lei Ficha Limpa (LC 135/2010)

Muitos devem ter acompanhado o desenrolar surpreendente da entrada em vigor e aplicação da Lei Complementar 135 de 2010 (LC 135/2010), comumente apelidada Ficha Limpa, no que tange o recurso apresentado pelo candidato Roriz, candidato a governador do DF (Brasília), de desprovimento da representação aberta pelo PSOL que o tornaria inelegível para as eleições de 2010 nos critérios da supra mencionada LC.

Para aqueles que nao acompanharam, um breve resumo em um parágrafo:

Em 2007, Roriz renunciou ao cargo de senador que ocupava para escapar de processo por quebra de decoro parlamentar a que responderia no âmbito da Operação Aquarela, pela partilha de 2,2 milhões Reais provenientes do BRB com o diretor deste banco e o diretor da Gol (ele alegou que o dinheiro era um “empréstimo” para comprar uma bezerra, mas informações posteriores indicam que ele teria usado esse dinheiro para comprar juizes do TRE…) – leia mais a respeito aqui. Com a entrada em vigor da LC 135/2010, o PSOL apresentou uma representação para que Roriz, candidato a governador nas eleições de 2010, seja considerado inelegível segundo os critérios da referida Lei (que prevê inelegibilidade de 8 anos para candidatos que tenham renunciado a cargo público que ocupem para fugir de processo). Assim, o TRE não inscreveu a candidatura de Roriz durante as convenções partidárias. Roriz apresentou recurso desta decisão no TRE e no TSE, que foi rejeitado. Apelando para a instância máxima que é o STF, Roriz apresentou lá o recurso RE 630.147/DF, que resultou em impasse no STF, após duas longas sessões (a segunda durou mais de 10 horas) em que os ministros terminaram em empate (5 votando a favor do provimento do recurso e cinco contra, em defesa da apliação da Ficha Limpa). Diante da indecisão do STF, Roriz decidiu retirar o recurso (evitando que seja julgado contra ou ficar à espera de um julgamento favorável que poderia não chegar a tempo) e candidatou em seu lugar a esposa, Wilnéia Roriz, a menos de 9 dia das urnas do primeiro turno. Um dia antes da publicação deste post, em debate entre candidatos a governador, a nova candidata leu sua fala e confundiu até a hora em que era para responder ou perguntar.

Mas não estamos aqui para falar de política.

Um dos elementos debatidos tanto pelos advogados de Roriz quanto pelos Ministros que votaram a favor do provimento de seu recurso, é a alteração promovida no texto da LC 135/2010 quando esta tramitou no Senado, após aprovada pela Câmara. Ora, a discussão é que se a alteração modificasse apenas a forma, não haveria problema que essa não regresse à câmara e, assim siga diretamente para aprovação do presidente e entrada em vigor, como foi o caso. Porém, este procedimento é incorreto se a modificação altera o mérito, isto é, o próprio conteúdo do texto.

Pois um dos argumentos apresentados pela defesa de Roriz é que a alteração de tempos verbais que foi promovida no texto altera o mérito (em particular: altera o rol de candidatos que estariam sujeitos à apliação da LC) e deveria, portanto, necessariamente retornar à Câmara para nova e final aprovação.

Foi publicada no site de notícias do STF a íntegra do discurso do Ministro Ricardo Lewandowski, um dos ministros do STF que votou em favor da aplicação da Ficha Limpa e é também presidente do TSE (a instância anterior que rejeito o recurso de Roriz). Nela, discutem-se cada elemento alegado pelos advogados de Roriz e em particular esse, que toca a própria interpretação do português. Trata-se de interessante arrazoado, que cito a seguir.

Espero que desfrutem esta discussão entre política, lingüística, filosofia e jurisprudência…

“(…)
A aprovação do projeto pelo Senado, de fato, suscitou certa perplexidade por conta de uma emenda de redação proposta pelo Senador Francisco Dornelles (PP-RJ), acatada pelo Relator, Senador Demóstenes Torres (DEM-GO), que alterou os tempos verbais em cinco situações. Em todos os casos, substituiu-se a construção “tenham sido condenados” pela expressão “que forem condenados”, nas alíneas e, h, j, l e n do art. 1º da LC 64/1990.

Para descobrir o sentido e o alcance dessa emenda de redação, é preciso fazer uma reflexão a respeito da técnica hermenêutica, pois não existe norma em si mesma considerada, senão aquela que é interpretada pelo aplicador do Direito.

O primeiro método de interpretação para compreender-se o significado de uma norma jurídica é o gramatical ou filológico. Nessa perspectiva, ao examinar a questão sob exame, Carlos Vogt, eminente Professor Titular de Linguística, área de semântica, da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, concluiu o seguinte:

(…)‘os que forem condenados’ é um enunciado de compreensão e não de extensão. Define, pelo predicado que enuncia, o universo compreensivo dos que nele se incluem pela qualidade de ‘ser condenado’, de maneira conceitual e, nesse sentido, intemporal. Não é um enunciado descritivo, isto é, não inclui por enumeração,  no conjunto dos ‘condenados’, os indivíduos que a ele pertencem, mas sim o faz por atribuição da qualidade enunciada no  predicado ‘ser condenado’. Daí a forma condicional de sua enunciação: em sendo condenado, a qualquer tempo, seja ontem, hoje, ou amanhã, o indivíduo pertence, por compreensão atributiva ao conjunto dos que são definidos pelo enunciado ‘os que forem condenados’ e, portanto, compreendidos pela abrangência da lei”.
Já para o filólogo Evanildo Bechara, membro da Academia Brasileira de Letras – ABL, enquanto a expressão “tenham sido” é mais clara e aponta para uma só categoria, qual seja, a daqueles que já foram condenados no passado, a expressão “os que forem condenados” dá margem a duas interpretações:

“Uma dessas interpretações abrange só os que vierem a ser condenados. A outra, porém, abrange todos aqueles na condição de condenados, o que, portanto, inclui os que já tiverem condenações. Do meu ponto de vista, essa segunda interpretação é a mais próxima do espírito inicial do projeto pensado na sociedade. E eu escolho o que está mais próximo do espírito do projeto”

Entretanto, ainda que, segundo esse método, possam surgir duas interpretações, como lembra Karl Larenz na esteira de outros doutrinadores, a interpretação literal dos textos legais constitui apenas a primeira etapa do processo hermenêutico. Vicente Ráo, por sua vez, discorrendo acerca das técnicas de interpretação, aponta para os riscos decorrentes do apego ao sentido literal dos textos, com o abandono dos demais processos hermenêuticos, recordando uma velha regra do direito luso-brasileiro segundo a qual “deve-se evitar a supersticiosa observância da lei que, olhando só a letra dela, destrói a sua intenção”.

Ao ponderar quanto aos problemas da exegese literal, Carlos Maximiliano, por seu turno, ensina que, na hipótese de “antinomia entre os dois significados, prefira-se o adotado geralmente pelo mesmo autor, ou legislador, conforme as interferências deduzíveis do contexto”. E acrescenta o referido jurista:

“Resulta imperfeita a obra legislativa; porque as Câmaras funcionam com intermitência, deliberam às pressas, e não atendem somente aos ditames da sabedoria (…). Daí resultam deslizes que se não corrigem, nem descobrem sequer, mediante o emprego do elemento gramatical: imprecisão dos termos, mau emprego dos tempos dos verbos (…)”.

Não obstante essa assertiva, conforme esclareceu o Relator do projeto de lei, Senador Demóstenes Torres, em interpretação autêntica, o Senado introduziu no texto apenas uma emenda de redação, com o objetivo de uniformizar e harmonizar os tempos verbais utilizados nos vários dispositivos do projeto.  Nessa linha, assentou, conforme consta dos anais, que

“pode ser feita uma emenda de redação, para colocar só os que forem. Pode apresentar emenda de redação, que acolho, que isso aí é bem para a harmonização desse texto. E nós vamos colocar os que forem. Mas não há defeito nenhum. Isso, em direito, é assim mesmo. Várias leis falam ‘os que forem’ e várias leis falam ‘os que tenham sido’. Agora, na mesma lei, realmente é complicado”
(grifei).

Assim, por tratar-se de mera emenda de redação, forçoso é concluir que o texto não sofreu nenhuma modificação em seu sentido original, pois se tal fosse o caso, o projeto teria sido devolvido à Câmara dos Deputados.

O já citado Dalmo de Abreu Dallari, reforçando tal entendimento, relembra que alguns exemplos, calcados na legislação brasileira, deixam evidente que a flexão verbal “forem” tem sido frequentemente utilizada na linguagem jurídica para designar uma condição e não um lugar no tempo:

“(…) no Código Civil que vigorou desde 1916, no artigo 157, ficou estabelecida a possibilidade de separação de um casal por mútuo consentimento ‘se forem casados por mais de um ano’. E jamais se disse que isso valia apenas para os casamentos futuros. Mais tarde, quando se introduziu o divórcio no sistema jurídico brasileiro, a lei nº 6515, de 26 de dezembro de 1977, dispôs que poderia ser dada a separação judicial dos cônjuges ‘se forem casados há mais de dois anos’. E pelo artigo 49, parágrafo 6º, estabeleceu-se que o divórcio realizado no estrangeiro, se um ou ambos os cônjuges forem brasileiros, só será reconhecido no Brasil depois de três anos da data da sentença. E jamais se disse que essas disposições valiam apenas para os casamentos realizados depois da  vigência dessa lei ou para os que adquirissem a nacionalidade brasileira depois da nova lei. As expressões ‘forem casados’ e ‘forem brasileiros’ designavam, precisamente,  uma condição ou qualidade, nada tendo a ver com acontecimentos futuros. Acrescente-se, ainda, que o novo Código Civil brasileiro, de 2002, estipula, no artigo 1642, inciso VI, que tanto o marido quanto a mulher podem ‘praticar todos  os atos que não lhes forem vedados
expressamente’. E ninguém, razoavelmente esclarecido, dirá que só estão proibidas as vedações estabelecidas por lei posterior a 2002. Quando a lei diz ‘forem vedados’ refere-se a estarem vedados, podendo a vedação estar prevista numa lei muito antiga”.

Desse modo, concluo que a expressão “os que forem condenados” não exclui do alcance da LC 135/2010 os candidatos já apenados, pois lei eleitoral nova que altere as causas de inelegibilidade – ampliando ou não seu gravame – aplica-se imediatamente.

Não se trata, pois, nessas hipóteses ou em outras contempladas na LC 135/2010, em especial aquela objeto de discussão nestes autos, a meu ver, de hipótese de retroatividade. Isso porque, por ocasião do registro, considerada a lei vigente naquele momento, é que são aferidas as condições de elegibilidade e as causas de inelegibilidade. São, portanto, levados em linha de conta, no momento oportuno, fato, ato ou decisão que acarretem a impossibilidade de o candidato obter o registro.

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